FIM DE TURNO
Saídas de fábrica no cinema
de Lumière a Loach
Site-livro de Carlos Alberto Mattos
Dramaturgia da fábrica
A fábrica como algoz

Exploração da dependência dos trabalhadores em relação aos patrões e demissões em massa são alguns aspectos denunciados em documentários e filmes de ficção que têm a fábrica como máquinas de moer do capitalismo. Aqui abordamos quatro exemplares em que esses temas são tratados por angulações bastante diferentes, vindos da França, dos Estados Unidos e da Índia. Da mesma forma, as cenas de saída dos operários assumem sentidos distintos.
O documentário Avec le Sang des Autres (Com o Sangue dos Outros), do francês Bruno Muel, denuncia as condições de trabalho nas usinas Peugeot da cidade de Sochaux em 1973. O autodidata Muel integrava desde a origem um dos grupos Medvedkine de cinema militante e era parceiro de Chris Marker.
O filme abre com imagens da saída dos operários e a apresentação de uma pequena banda de música nas proximidades dos portões. Em seguida, um trabalhador idoso apresenta o castelo da família Peugeot e, a poucas centenas de metros, habitações depauperadas da vila operária construídas com o dinheiro dos empregados. Ele discorre também sobre a dependência total dos operários em relação à empresa, que controla/explora todos os setores – inclusive o sindicato – e procura evitar a organização política dos trabalhadores.
Imagens sufocantes no interior da usina informam como a linha de montagem determina o ritmo de trabalho de homens e mulheres. Operários falam de problemas de saúde, distúrbios familiares provocados pelo excesso de horas de trabalho, falta de perspectiva e luta pela sobrevivência. A atmosfera é de cansaço e insatisfação, sem lugar para sorrisos.
O filme, alinhado à CGT (Confederação Geral do Trabalho), rememora um confronto com a polícia em 1968, quando houve dois mortos e 150 feridos em Sochaux. Em 1972, um ano antes de Avec le Sang des Autres, Bruno Muel havia participado da equipe de Weekend à Sochaux, filme colaborativo entre cineastas profissionais e operários da Peugeot local.
Já em seu primeiro filme, Roger e Eu (Roger & Me), o jornalista e documentarista Michael Moore estampou suas credenciais de ativista contra os desarranjos do capitalismo nos EUA e aliado das classes menos favorecidas. Com uma montagem satírica e um tino para o flagrante revelador, ele construiu naquele longa-metragem um painel da decadência de sua cidade natal, Flint, Michigan, após o fechamento de 11 fábricas da General Motors no local. Cerca de 30.000 moradores ficaram sem emprego, o que resultou em empobrecimento geral, aumento da criminalidade e êxodo de parte da população durante a década de 1980.
Antes símbolo da indústria automotiva estadunidense, Flint conhecia o ocaso e tentava se reerguer de maneira patética, entre empreendimentos turísticos fadados ao fracasso e oferta de subempregos. As cenas reunidas por Moore chegam à beira do surrealismo, quando não da tragédia. Um dos personagens recorrentes é um oficial encarregado de despejar pessoalmente famílias pobres que não tinham como manter o aluguel em dia.
O diretor estabeleceu como eixo do documentário as suas tentativas infrutíferas de encontrar-se com Roger Smith, CEO da GM, responsável direto pela estratégia da empresa de encerrar fábricas nos EUA e abrir novas unidades no México com mão de obra mais barata. Moore é visto tentando entrar em prédios corporativos, clubes e cerimônias em que Roger poderia estar presente. É invariavelmente barrado por seguranças e prepostos engravatados. Aproveita para entrevistar e expor a alienação de ricaços e serviçais – incluídos aí artistas como o cantor Pat Boone, chamado de Mr. Chevrolet –, numa crítica ácida ao abismo entre as classes.
Em meio ao processo de fechamento das fábricas, Moore interpela com sua câmera um grupo de operários que saem de um galpão. Com sua verve de provocateur, ele pergunta: “O que vocês têm a dizer a Roger Smith?”. No contexto demissionário de então, a saída dos trabalhadores ganha um sentido de saída definitiva. Saída para o desemprego.
Tal como Ken Loach na Grã-Bretanha, Laurent Cantet foi um cineasta particularmente interessado pelo universo do trabalho. Recursos Humanos, A Agenda e A Trama lidam diretamente com essas questões. Em Recursos Humanos (Ressources Humaines) há uma cena de saída de fábrica que, apesar de rápida, condensa vários significados.
O filme trata de um conflito de classes dentro de uma família provinciana em fins dos anos 1990. O jovem Franck (Jalil Lespert) retorna de Paris com um diploma de administração de empresas e vai estagiar nos escritórios da fábrica em que trabalham como operários seu pai (há 30 anos) e sua irmã. Ele acredita que pode driblar os patrões e o sindicato para negociar com os empregados a redução da jornada de trabalho para 35 horas semanais. Esse padrão viria a ser adotado legalmente na França a partir de 2000.
Ao propor uma consulta direta aos operários sobre o assunto, à margem do sindicato, ele parece prestes a assumir-se como um aprendiz de patrão, apenas um pouco mais cuidadoso. No entanto, descobre que a direção da empresa se valia da ocasião para preparar uma demissão de 12 empregados, inclusive o seu pai. Um tanto por essa razão pessoal, Franck muda de lado, denuncia a manobra e passa a apoiar um movimento grevista liderado por representantes da CGT (Confederação Geral do Trabalho).
Franck é um rapaz dividido entre dois mundos: representa os interesses neoliberais, e seu pai é um operário conservador que se submete à diferença de classe e não se envolve com as lutas trabalhistas. De outra parte, a origem de Franck o aproxima do operariado, do qual tenta manter-se próximo. Ele tem uma reserva de consciência social que eclode justamente quando se vê utilizado pela direção da fábrica.
No terceiro ato do filme, já demitido e engajado na luta sindical, ele vai ao portão da fábrica convocar os operários para uma reunião. É sua conversão definitiva ao “outro lado”. Uma expressão de tristeza e vergonha toma seu rosto quando vê o pai passar ao largo, alheio à luta e censurando-o com o silêncio e a distância.
Os operários de uma grande fábrica de tecidos no estado indiano de Gujarat são enfocados em Machines (2016), de Rahul Jain. O documentário limita-se quase sempre a observar as rotinas exaustivas em planos longos e móveis através dos longos corredores de máquinas, fornalhas e tinturarias onde homens de torso suado e rostos cansados executam suas tarefas. Tudo é rudimentar, da manipulação dos tecidos ao controle de qualidade escrito na palma da mão. A automação convive com o esforço físico e o trabalho repetitivo.
Crianças, jovens e velhos misturam-se sem distinção. A tomada de um menino trabalhando numa máquina à beira da completa exaustão é algo difícil de suportar. As crianças labutam desde cedo para que se tornem adultos habilidosos e entrem na lógica perversa do capitalismo à indiana.
Rahul Jain cria imagens poderosas do trabalho escravo ao mesmo tempo em que o denuncia. Nas poucas entrevistas com operários, ouve opiniões típicas do conformismo hindu. Embora não tenham direitos trabalhistas e operem em turnos de 12 horas diárias, muitos não se sentem explorados. A dependência das rúpias mirradas os torna submissos. O patrão também fala para o filme e expõe a sua lógica: se eles ganharem bem, vão relaxar e deixar de se preocupar com a empresa.
Apenas um operário, fora da fábrica, expõe claramente a situação: quando raramente os trabalhadores esboçam alguma união, o líder é assassinado. Assim a indústria continua a funcionar, fazendo de homens e máquinas uma coisa só.
A sequência de saída da fábrica tem elementos que configuram a semelhança com o presídio: o portão gradeado, a presença ostensiva dos guardas. O sentido dessa cena é complementado pela fala do patrão, que vem logo a seguir. Ele se diz forte o suficiente para evitar a atuação de um eventual sindicato. O tom é de arrogância e ameaça.