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As saídas se multiplicam

Ao longo do século XX e depois

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A captação da saída de fábrica – ou de outros espaços de trabalho coletivo – estendeu-se ao longo do século XX e até a atualidade como foco de interesse para trabalhos documentais, de propaganda e de telejornalismo. Com frequência, a câmera se colocava frontalmente à movimentação dos trabalhadores, nos moldes das filmagens pioneiras dos Lumière. Fosse para dimensionar o tamanho de uma indústria, fosse para testemunhar uma movimentação política dos trabalhadores ou para simplesmente documentar o espírito de um tempo, a saída de fábrica se perpetuou como um motivo privilegiado do cinema do real.

Ainda na década de 1910 prevalecia o modelo da saída-performance, em que operários deixavam a fábrica conscientes de que estavam sendo filmados. A abertura dos portões era como a abertura da cortina de um espetáculo.

 

Dois pequenos filmes da British Pathé de 1914 e 1918 exemplificam isso. Em um deles, as empregadas de uma fábrica de munições aparecem primeiro em atividade no interior das oficinas; em seguida, após uma cartela explicativa, os portões se abrem e elas se dispersam alegremente. Como no filme dos Lumière, se dividem entre a esquerda e a direita, nunca pelo centro onde se encontra o aparato de filmagem em posição um pouco elevada. Dois guardas armados guarnecem os portões. Formato semelhante tem outro registro, este diante da fábrica de lâmpadas Osram. Grupos compactos de homens e mulheres (estas em maior número) em roupas de inverno deixam o trabalho rumo a suas casas, sempre a passos rápidos ou mesmo correndo.  

Um eloquente registro em frente a uma fábrica da Ford, nos EUA de 1926, deixa patente uma das funções dessas filmagens, que era a de expor o tamanho da empresa por meio do número de operários. E, como destaca Harun Farocki em Trabalhadores Saem da Fábrica, para que isso ficasse visível na imagem era preciso filmar a saída dos empregados, quando todos passavam pelos portões à mesma hora. Ali estava a força de trabalho completa. Nesse exemplar, a tomada panorâmica básica dos trabalhadores descendo as escadas é complementada por outras mais próximas às pernas dos homens, que enfatizam o movimento e evidenciam uma intenção estética. 

 

O modelo de filmagem de saídas de fábrica com câmera fixa e sem outras intenções aparentes permaneceu válido ao longo das décadas seguintes, como se pode ver nos próximos exemplos dos anos 1930 e 1940.

 

Uma intensa movimentação se vê diante de um portal urbano em algum ponto da Inglaterra em 1934. Dali emergem trabalhadores fabris. O posicionamento da câmera no lado oposto da rua cria uma interessante dinâmica de fluxos longitudinais e latitudinais. Nesse caso, já não prevalece o modelo da saída-espetáculo, uma vez que a filmagem é meramente observacional, sem interferir na ação que registra e sem o conhecimento das pessoas filmadas.

Na Inglaterra, em algum ponto da década de 1940, quatro planos descrevem o fim de turno numa fábrica de armamentos. Em outro registro, este da Pathé britânica de 1942, mostra empregados saindo às pressas de uma fábrica não identificada. A estrela aqui, porém, é o vendedor de jornais assediado pelos trabalhadores a caminho de casa.

Por fim, na China, circa 1944, operários são vistos saindo de uma usina metalúrgica e depositando seus crachás no painel de controle. A certa altura, um homem entra em quadro para chamar a atenção de um dos trabalhadores, provavelmente por achar que ele havia esquecido de depositar o seu crachá.

 

O hábito de postar uma câmera frente à saída de um local de trabalho se prestou a muitos usos no telejornalismo a partir da década de 1950. Vejamos dois exemplares britânicos de 1971, produzidos para o programa This Week, da Thames Television. O primeiro é parte do copião de uma reportagem sobre uma greve na Rolls-Royce. Duas tomadas de saída dos operários, provavelmente após terminada a paralisação, estão no final do episódio. O registro é curioso por plasmar a diferença na aparência dos jovens ingleses na época da swinging London em relação aos operários mais maduros: as moças de minissaia, os rapazes com cabelo à moda Beatles. O cinegrafista não esconde seu interesse por corrigir o quadro para acompanhar alguns “personagens”. Ao final de cada plano, vemos o claqueteiro e podemos identificar o nome de David Elstein, um dos muitos roteiristas que passaram pela This Week.

 

O segundo fragmento de 1971 documenta a saída para o almoço na fábrica da Singer. A câmera se coloca, a princípio, por trás das grades do portão, levando-nos ao paralelo entre fábrica e prisão, que vamos examinar mais adiante. A partir do momento em que essa experimentação do cinegrafista se interrompe e a câmera recua, descortinam-se a escadaria e o pátio da fábrica. A claquete, mais uma vez, encerra o plano único, deixando entrever o nome do roteirista Chris Goddard. 

Persistência, paródia e fetiche

O motivo da saída de fábrica ou de estabelecimentos assemelhados persiste até hoje no imaginário cinematográfico sob formas as mais diversas. Não me refiro a projetos comissionados como os workshops Labor in a Single Shot, conduzidos por Harun Farocki e Antje Ehmann (veja no capítulo A fábrica segundo Harun Farocki). Nem propriamente às obras que dão conta das formas contemporâneas de atividade, como visto no capítulo Novas configurações do trabalho. Falo aqui do ressurgimento desse tipo de cena em materiais dispersos na rede e em filmes que elaboram diretamente sobre o modelo dos irmãos Lumière.

 

Uma rápida pesquisa nos grandes bancos de dados da internet vai trazer uma miríade de vídeos sobre trabalhadores saindo de seus locais de trabalho. Dois exemplos são o Getty Image e o Pond5. A persistência desse tipo de registro depois de mais de um século acabou por se transformar numa espécie de fetiche, com o qual se retorna sempre ao movimento inicial do cinematógrafo. Verifica-se, ainda, a apropriação do motivo pelo humor e a paródia.

 

No média-metragem Exit (2008), a fotógrafa e cineasta estadunidense Sharon Lockhart inverteu a perspectiva do filme dos Lumière, postando sua câmera rigidamente fixa de maneira a filmar a saída dos operários vindos de trás e se afastando por baixo de uma passarela de ferro. Eles provêm da esquerda e da direita, como em Lyon, mas são vistos de costas, carregando suas mochilas e marmitas. Como não vemos seus rostos, somos levados a considerar suas diferentes compleições físicas, as formas de andar, as roupas mais ou menos padronizadas, além de todo tipo de especulação sobre suas vidas e condições.

 

A razão aproximada é de uma mulher a cada 100 homens. Trabalham nos estaleiros Bath Iron Works, no estado do Maine. O filme se compõe de cinco blocos de oito minutos cada, relativos aos cinco dias de uma semana de trabalho. O caráter repetitivo da debandada ao longo dos cinco dias parece replicar a rotina do interior da fábrica. A diferença está na pressa com que caminham e na relativa informalidade com que se comportam, em pequenos grupos ou em breves encontros no trajeto. Podemos ouvir curtos fragmentos de conversas, captados ao passarem perto do equipamento de filmagem, juntamente com os sons dos passos. Em cada bloco ouvimos também o som da sirene que marca o fim do turno de trabalho.

Trago aqui um trecho inicial de Exit.

A familiaridade com as câmeras de vigilância e a reflexividade dos telões em locais públicos transparece em um trecho de vídeo no qual homens e mulheres deixam o trabalho em ruidosa alegria no Camboja. A julgar pela atitude de duas passantes, as imagens são exibidas simultaneamente num telão. Em outro vídeo, a reapropriação paródica se apresenta no esboço de coreografia com três funcionários ao fim do expediente numa fábrica não identificada.

Exit
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