FIM DE TURNO
Saídas de fábrica no cinema
de Lumière a Loach
Site-livro de Carlos Alberto Mattos
As saídas se multiplicam
Os dez primeiros anos de existência do cinematógrafo foram férteis em saídas de fábrica. Não foi apenas na sua unidade de Lyon que os irmãos Lumière escalaram trabalhadores como protagonistas de suas "vistas animadas". Eles realizaram vários pequenos filmes retratando o trabalho, até mesmo a derrubada de uma parede a marretadas sob as ordens de Auguste dentro do quadro (Démolition d'un Mur, 1896).
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Mas foi La Sortie de l'Usine Lumière à Lyon que rapidamente deu origem a uma espécie de gênero cinematográfico ao redor do mundo. As saídas de fábricas, de minas, de escolas e até de igrejas inflamaram o interesse de operadores na França e em vários países. Com o tempo, o modelo "saída de fábrica" (ou factory gate films, como o chamavam os britânicos) se fixou no imaginário de cineastas, fossem eles profissionais, amadores ou simplesmente ocasionais, como veremos mais adiante.
O próprio Thomas Edison, pioneiro do cinema pré-cinematógrafo, foi um dos primeiros a emularem o modelo dos Lumière. Já em 1896, sua empresa filmava uma saída de fábrica em Clark's Thread Mill, que levava o título de Employees Leaving a Factory. Não há registro da preservação desse filme.
Georges Méliès também teve o seu momento de portão de fábrica. Consta que ele filmou a saída dos operários da fábrica de perfumes Vibert em 1896, mas pouca informação e nenhuma imagem deste filme sobreviveu. Da mesma forma, a pioneira cineasta francesa Alice Guy-Blaché realizou em 1899 Entrée et Sortie de la Mine, que mostrava trabalhadores entrando e saindo de uma mina. Filme de difícil acesso e possivelmente perdido, consta que incluía cenas tingidas a cores.
Os irmãos Pathé na França e a empresa belga Grünkorn foram outras produtoras que exploraram extensivamente o filão. Nessa produção Pathé de 1896 vemos os operários de uma fábrica cruzarem o portão, a maioria conduzindo suas bicicletas.
Esses filmes costumavam atrair sobretudo os próprios trabalhadores que neles apareciam. Eram explorados por exibidores ambulantes que os apresentavam tanto em cinematógrafos particulares, quanto em feiras e recintos públicos, às vezes no mesmo portão da fábrica onde tinham sido rodados. Os protagonistas pagavam para assisti-los e reconhecer a si mesmos e a seus amigos.
Na Inglaterra, que muito praticou esse modelo, eram chamados de local films. Além dos cinegrafistas havia a figura do showman, um empresário misto de animador e exibidor que contratava as produções, coordenava a movimentação dos operários na filmagem e ao mesmo tempo promovia as sessões seguintes.
Bem antes que o formato dos filmes de observação surgisse no horizonte dos documentários, a massa filmada era estimulada a interagir com a câmera, sem dissimular o fato de que todos sabiam estarem sendo captados nas imagens. Daí o fascínio que essas primeiras saídas de fábrica exercem sobre o espectador. É interessante perceber o gestual, a performance corporal, os olhares, sorrisos e formas como as pessoas se relacionam enquanto caminham para seus destinos particulares. Há também os que simulam indiferença ou até cobrem o rosto, quiçá por se sentirem envergonhados ou mesmo explorados por uma tecnologia que ainda desconheciam.
Com poucas exceções, o que vemos são manifestações de alegria, alívio e liberação. O fim do turno lhes permite voltar ao ar livre, à vida doméstica e ao lazer. Ou pelo menos lhes propicia uma pausa para o almoço e um pequeno descanso.
Tom Gunning, que estudou especialmente os filmes da dupla inglesa Sagar Mitchell e James Kenyon, destacou o tesouro que constituem como objetos de estética e fontes de informações sobre a classe trabalhadora no início do século XX: “um vislumbre de um canto do mundo como aparecia numa manhã, noite ou tarde qualquer, quando os portões se escancaravam e um mar de humanidade acorria para encontrar, e ser encontrado, pela mídia mais nova do século”.
Bombeiros e fiéis
Das fábricas o gênero logo passou a se estender a igrejas e até à saída de bombeiros para apagar algum incêndio – o que fornecia, além do movimento, cota extra de tensão aos pequenos registros. Nesse exemplar dos Lumière de 1896, Sortie de la Pompe, verificamos à esquerda do quadro a presença de um homem de guarda-pó branco que parece imitar os gestos do operador rodando a manivela da câmera. Um destino do cinema: por muito tempo, a operação de filmagem haveria de despertar mais atenção do que o objeto filmado.

No Brasil, ainda no cinema silencioso, o documentário Veneza Americana também incluía uma saída de bombeiros. O filme, produzido em 1924 pela pioneira Pernambuco Filmes de Ugo Falangola e J. Cambieri, e dirigido por Bezerra Leite, louvava os trabalhos de urbanização da cidade e de ampliação do porto de Recife durante a gestão do governador Sérgio Loretto (1922-1926). Trata-se de um típico filme de cavação, repleto de intertítulos pomposos, mas que enfoca com certo senso de espetáculo a pujança da “Veneza brasileira” de então. As cenas da Exposição Geral de Pernambuco são particularmente divertidas, com o cinegrafista utilizando os vários brinquedos do parque de diversões. A sequência da saída dos bombeiros revela, pela baixa velocidade dos veículos, que tudo se resumia a uma demonstração para a filmagem.
Sortie de l’Église, rodado em Nîmes (França) por cinegrafistas dos Lumière em 1896, foi exemplo de aplicação do método à debandada dos fiéis após uma missa. Vemos homens, mulheres e crianças, todos em roupas de gala, deixarem a igreja por duas portas frontais. Com a câmera bastante distanciada, ninguém parece se dar conta de que seus movimentos estão sendo registrados. Isso difere bastante das saídas de fábrica da época, geralmente programadas pelos patrões e cinegrafistas com o conhecimento prévio dos trabalhadores.
As saídas de igrejas também repercutiram no Brasil, como demonstra uma filmagem de Eduardo Hirtz em Santa Maria (RS), em 1909. Trata-se do registro documental mais antigo preservado na Cinemateca Brasileira. Estava sendo inaugurada a Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição. À saída da missa de sagração da igreja, a multidão se concentra para assistir à filmagem. Em tomadas sucessivas, um homem é visto, à direita, organizando o cortejo dos fiéis importantes e garantindo sua passagem. Primeiro, as damas; em seguida, os cavalheiros; e por fim o bispo e seus acólitos. A captação da cena deve ter sido um atrativo tão celebrado quanto o próprio evento religioso.
O fragmento preservado do filme gaúcho, de pouco menos de cinco minutos, inclui a partida de um trem da estação de Santa Maria e pode ser visto na íntegra neste link.