FIM DE TURNO
Saídas de fábrica no cinema
de Lumière a Loach
Site-livro de Carlos Alberto Mattos
Saída para a luta
No ABC paulista

O ciclo das chamadas “grandes greves” dos metalúrgicos, iniciado em maio de 1978 com a paralisação na Scania, levou o ABC paulista ao centro da política nacional. Políticos, patrões e mesmo sindicalistas foram tomados de surpresa pelo rápido crescimento do movimento sob a liderança de Luís Inácio Lula da Silva. Daí nasceria uma nova imagem do operariado brasileiro e o próprio Partido dos Trabalhadores. Os portões das fábricas ferviam com a panfletagem, momento de ministrar uma injeção de consciência nos trabalhadores que rumavam para suas casas. A saída (e também a entrada) dos operários era a oportunidade de expressar sua vontade diante das câmeras. Destaco aqui dois exemplos de documentário, um de cinebiografia e um de ficção que transportou para aquele contexto uma obra teatral anterior.
Luís Inácio Lula da Silva é o personagem central de ABC da Greve, de Leon Hirszman, e Linha de Montagem, de Renato Tapajós. Ambos os filmes, embora realizados no calor das célebres paralisações dos metalúrgicos do ABC paulista entre 1978 e 1980, seriam finalizados posteriormente, como documentos de memória e reflexão.
ABC da Greve flagrava o país em 1979, quando o movimento dos metalúrgicos fomentava um grande salto político para a classe trabalhadora brasileira. A movimentação dos operários no período foi pródiga em registros cinematográficos, como, além dos já citados, os de Greve!, de João Batista de Andrade, Greve de Março e A Luta do Povo, de Renato Tapajós, e Braços Cruzados, Máquinas Paradas, de Roberto Gervitz e Sérgio Toledo.
ABC da Greve serviu para Leon como laboratório para a realização de Eles Não Usam Black-tie. O cineasta foi à favela, às casas, queria se aproximar da vida operária e realizar a tão sonhada ligação direta entre intelectual e classes populares. Trocou a oportunidade de interferir diretamente nos rumos do movimento, como faziam os filmes de Tapajós, por uma construção mais elaborada que alcançasse um público maior. Quando Adrian Cooper o finalizou em 1989, era um filme basicamente de memória e reflexão.
Nas imagens captadas no interior das fábricas, nas grandes assembleias, nas ruas e favelas do ABC, vemos as negociações difíceis, os conflitos com a polícia, a intervenção nos sindicatos e o talento do futuro presidente em liderar a massa operária no rumo melhor a cada momento.
Entre muitas cenas filmadas nas proximidades dos portões das fábricas, destaca-se, aos 60 minutos, um show em apoio ao movimento operário com participações de Bete Mendes, Lélia Abramo, Dominguinhos, Gonzaguinha, Sérgio Ricardo, Jards Macalé, Raimundo Fagner, Beth Carvalho, Elis Regina e João Bosco, entre outros e outras. A canção Asa Branca se estende em seguida sobre as imagens da massa de trabalhadores se afastando das instalações da Ford em protesto contra o desconto dos dias parados, que contrariav um acordo feito anteriormente.
Em meio ao trânsito intenso de metalúrgicos, alguns se detêm diante da câmera e do microfone para expor suas reivindicações e reafirmar a continuidade da greve. São momentos simbólicos de uma mudança de paradigma na forma de mostrar os operários brasileiros no cinema, não mais como componentes de uma massa amorfa, mas como indivíduos particularizados e com voz. Entrava em cena o operário protagonista em vez de domesticado como sujeito a serviço da nação nos antigos documentários de Jean Manzon e Amaral Netto.
Linha de Montagem foi editado em 1982, a partir de 40 horas de material bruto e da consciência de que o país acabara de viver um momento histórico. Lula e outros sindicalistas fazem avaliações, autocríticas, tanto no calor da hora quanto depois, mais distanciados. Nas cenas de uma assembleia em maio de 1979, quando Lula convence a massa a não fazer greve inoportuna, mas aprovar acordo ruim e lutar pela volta da diretoria afastada, Linha de Montagem se afirma como o grande testemunho fílmico do nascimento de uma liderança.
O filme faz uma crônica abrangente do movimento, entre o sindicato, as grandes assembleias no estádio de Vila Euclides, os portões das fábricas e as escaramuças policiais na tentativa de conter o ânimo dos operários. Selecionei dois blocos interessantes para este nosso estudo. O primeiro é uma sequência que alterna a panfletagem na saída dos trabalhadores da Volkswagen com uma discussão no âmbito do sindicato sobre a formação de comandos de greve.
No segundo bloco, destaca-se o sindicalista Djalma de Souza Bom, guerreiro de porta de fábrica, perfeito complemento da ação de Lula. Diante dos mesmos portões da Volkswagen, o futuro político Djalma convoca os operários a votarem na chapa da diretoria cassada. A câmera flagra a revista das bolsas dos trabalhadores pelos seguranças da fábrica, quando se ouve a observação irônica de Djalma: “Tem algum companheiro aqui saindo com um carro dentro da bolsa? Isso não pode acontecer”.
Lula foi interpretado pelo ator Rui Ricardo Diaz na cinebiografia Lula, o Filho do Brasil, de Fábio Barreto. Na sucessão de eventos que vão compondo a narrativa há duas rápidas sequências de panfletagem na saída dos metalúrgicos.
Eles Não Usam Black-tie, de Leon Hirszman, adaptou para 1980 e para um bairro operário de São Paulo a peça homônima de Gianfrancesco Guarnieri ambientada originalmente numa favela em 1958. A então recente vitória das greves metalúrgicas do ABC paulista e a criação do Partido dos Trabalhadores criaram o cenário adequado para atualizar as repercussões de uma greve na vida de uma família operária.
Otávio (Gianfrancesco Guarnieri) é um trabalhador consciente que já esteve preso e teme a deflagração precipitada de uma greve sem adesão significativa dos companheiros. Ele e Bráulio (Milton Gonçalves) se opõem ao voluntarismo de Sartini (Francisco Milani). Temem que a paralisação numa única e pequena fábrica não vá contribuir para o movimento operário como um todo. “Isso aqui não é São Bernardo”, argumenta Otávio.
Enquanto isso, Tião (Carlos Alberto Ricelli), filho de Otávio, preocupado com o futuro de seu casamento e do filho a caminho, opta por furar a greve e ainda estimular os colegas a fazerem o mesmo. A ruptura no seio familiar é inevitável, configurando um drama complexo e cheio de humanidade.
A porta da fábrica é o locus de conflagração da ética operária, onde se batem o radicalismo de uns, a cautela de outros e o oportunismo de outros tantos. A partir dali a dramaturgia da peça e do filme falam de caráter, necessidade, solidariedade e, em certa medida, conflito de gerações.
Destaquei dois momentos em que os operários deixam o complexo da fábrica. No primeiro, aos 53’30, antes da greve, o agitador Sartini acaba de ser demitido e discute as formas de luta com os mais ponderados Otávio e Bráulio. No segundo momento, aos 108’20, já decretada a greve e fracassados os piquetes, os líderes grevistas assistem, impotentes, à saída dos fura-greves. A cena é melancólica, com os operários deixando a fábrica em silêncio e com olhos baixos. Sartini, porém, mantém acesa a chama da indignação, mesmo ante a presença maciça de policiais, que logo avançam, cassetetes em punho, contra os piqueteiros que tentam impedir a entrada do turno da noite.